Ninguém entendeu nada - Uma reflexão sobre a decisão de Cármem Lúcia - RN 433

Coube a ilustre presidente do STF adentrar em questão polêmica para o setor de saúde suplementar, não sem provocação, é claro, este papel coube a OAB, que num rompante incumbiu-se do papel de Don Quixote, empunhando como lança a palavra e como escudo os meios de comunicação que tão entendidos são sobre o assunto que chegaram a confundir a decisão proferida com o famigerado reajuste anual dos planos individuais.

Logo na inicial elaborada pela OAB apresenta o forte e inverídico argumento de que a normativa objeto da ação teria por princípio a “instituição” de mecanismos de regulação financeira, vejamos:

“É que, sob o falso pretexto de instituir mecanismos de regulação financeira dos planos privados de assistência à saúde, a referida Resolução foi muito além e desfigurou o marco legal de proteção do consumidor no país.”

Nesta peça nota-se muito claramente o desconhecimento do setor regulado e sua regulação. Não coube a ANS instituir, criar ou reinventar os mecanismos, nada disso.  Vivemos em uma economia capitalista que, por princípio tem a irrestrita liberdade de comercio e indústria, inclusive foi a própria indústria da saúde privada que instituiu esta solução na década de 90. Naquele tempo as empresas já viviam os reflexos da inflação médica, sempre superior a inflação geral, quando é ofertada pelo mercado uma opção para reduzir o valor de mensalidade de planos sem onerar em demasia seu empregado, o que foi feito por meio da criação da coparticipação, circunstância em que o colaborador passaria a arcar com parte da despesa decorrente de seus atendimentos de saúde, mantendo o valor de contribuição realizado pelo empregador dentro dos parâmetros que o orçamento da empresa comportava.

A comercialização de planos privados de assistência à saúde se dá de forma a suplementar ao direito garantido constitucionalmente e ofertado à população através do SUS, não cabendo à alegação apresentada na inicial de que a regra proposta pela RN 433 viria a “instituir severa restrição a um direito constitucionalmente assegurado (o direito à saúde)”. Na verdade, se considerarmos verdadeira esta afirmativa, qualquer restrição prevista nos contratos de planos de saúde poderia ser considerada como uma restrição ao direito à saúde, visto que cria a condição de haver a contraprestação pecuniária, mas veja, este direito não é dever do setor privado, e sim do estado, portanto passa a aplicar-se no escopo da garantia oferecida pelo sistema público de saúde e não pelo sistema privado.

A referida inicial ainda alega que a Lei 9656/98 não atribuiu poderes à ANS de legislar sobre a matéria; de fato não é nesta lei que estão estabelecidos as competências desta agência reguladora, mas sim em outra, na Lei 9961/00, que a cria como autarquia como órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades dos planos de saúde, com a finalidade de promover a defesa do interesse público, regulando as operadoras e suas relações com prestadores e consumidores (artigos 1º e 3º). No inciso VII do artigo 4º vai mais além e define na sua competência:

“VII - estabelecer normas relativas à adoção e utilização, pelas operadoras de planos de assistência à saúde, de mecanismos de regulação do uso dos serviços de saúde”

Bem, o desconhecimento pleno do segmento da ilustre entidade não parou por aí...quando passa a tratar do fundamento jurídico para o pedido, traz a informação infundada de que o mercado tem prática de até 30% de fator moderador, concluindo ainda que 40% passaria a ser abusivo por este único e infundado motivo. Ora, sem citar fonte ou critério razoável como pode apenas com a força da sua lança, a palavra, obter êxito? Pois bem, e o obteve em primeira análise.

A peça vem ainda a deduzir como prejudicial para o consumidor o modelo de franquia proposto pela RN 433, sem sequer entender ou detalhar seu caráter totalmente opcional. Faz menção a opção de livre escolha preconizada na Lei dos planos de saúde, sem saber que em nenhum artigo ou aspecto da resolução proposta este direito tenha sido alterado. Mas o mais curioso da peça toda são as afirmações de que: imediata e compulsoriamente a partir da vigência da norma todos os beneficiários de planos de saúde passarão a arcar com 40% das despesas de seus planos de saúde, mesmo com as isenções (cerca de 250 eventos).

Na decisão cautelar de suspensão da RN 433 a juíza apresenta argumentos muito consoantes com a peça inicial, dando a entender que concorda com o ponto de vista apresentado pela OAB e ainda adiciona que a incerteza gerada por normas editadas fora do legislativo é o principal prejuízo para o consumidor, por “falta de transparência dos debates, das razões e finalidades buscadas pela norma” (...) e de que “A confiança em todo sistema não pode ser diminuída ou eliminada por normas cuja correção formal é passível de questionamento judicial.” Enfim, entende o juízo que a ANS teria extrapolado sua competência por dois motivos: (1) por regular de forma diversa das diretrizes de instância superior, o CONSU; (2) por impor ao consumidor de planos de saúde participação excessiva e fator restritivo ao acesso a saúde, direito de todos e dever do estado.

Cabe a mim, emitir opinião, pois apenas isto posso fazer. Não sou advogada, sou atuária, não pretendo discutir matéria de hierarquia jurídica, mas tenho opinião. Não faz sentido a OAB apresentar a questão com tanta tendência (sem identificar a qual lado, pois baseia-se na equivocada premissa de que a norma estabelece obrigatoriedade de pagamento em coparticipação e estabelece novo limite superior ao atual) e ausência de aprofundamento no estudo da matéria, afinal de contas, é o órgão máximo de representação da advocacia no país, a quem se pressupõe ter um notável conhecimento jurídico. A leitura interpretativa de que a RN 433 traz aumento do modelo de fator moderador atualmente adotado pelo mercado é leviana, fruto de uma avaliação superficial da norma e total desconhecimento das práticas de mercado. Hoje os planos de saúde podem determinar coparticipação no percentual que desejarem, não há limite estabelecido, apenas uma definição subjetiva de que não pode representar ‘fator restritivo severo”, cabendo ao judiciário ou a ANS conforme a instância, determinar o que isto significa, gerando casuísmo nas decisões e atingindo apenas aos que buscam questionamento. É prática comum os planos com até 50% de fator moderador (e afirmo isto com conhecimento de causa, pois a Prospera realiza precificação para cerca de 5 mil planos por ano), tendo a ANS, no exercício de fiscalização deixado claro este entendimento desde 2007. O conjunto de regras previstos na RN 433 traz muito mais benefícios ao consumidor de planos de saúde do que ônus, pois:

  1. Estabelece um teto de cobrança quando a coparticipação for em percentual;
  2. Define um rol significativo (+ de 250) de eventos que sempre serão isentos de cobrança de coparticipação, beneficiando a prevenção e atendimento a portadores de condições crônicas de saúde;
  3. Estabelece um teto de valor mensal e um anual a ser pago pelo beneficiário a título de fator moderador;
  4. Define com clareza o conceito de franquia, que pode ser agregada ou anual, de contratação opcional e sempre respeitando os mesmos limitadores financeiros mensal e anual da coparticipação;
  5. E o mais importante do que tudo que está sendo discutido: é opcional! O consumidor poderá escolher qual modelo de plano deseja, se um plano tradicional, com coparticipação ou com franquia.

Para as operadoras, por outro lado, já não é bem assim. A regra impõe tantas condições que as operadoras estão reavaliando se continuarão a operar este modelo de produto ou não, pois nem toda operadora está preparada para a complexidade tecnológica demandada por este modelo.

Disso tudo fica uma questão apenas: a OAB participou do processo democrático de discussão desta norma? Ela esteve em consulta pública entre os dias 31/03/2017 à 02/05/2017 e foi alvo de 1.175 contribuições da sociedade, inclusive dos órgãos de defesa do consumidor. A norma publicada deve refletir estas contribuições.

Considerando tudo que coloquei neste artigo, chego a seguinte opinião: ninguém entendeu nada. Nem o consumidor que está pensando que ficou ruim, nem as operadoras que ainda estão estudando a normativa e seus impactos operacionais e muito menos a OAB que deram início a este embate na esfera judicial.


Raquel Marimon
Presidente

 

Leia mais sobre o tema em:

Mecanismos de Regulação - processo operacional


Data da notícia: 26/07/2018

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