Bitcoin e ANS

O objetivo desse artigo consiste em discutirmos alguns aspectos relacionados a quando as operadoras de planos de assistência à saúde suplementar puderem investir em bitcoins (e outras criptomoedas).

Vamos olhar para o futuro para tentar responder as seguintes perguntas:

  1. Bitcoins poderão ser dados como ativos garantidores das provisões técnicas?
  2. Servirão como constituição das obrigações com capital regulatório no patrimônio líquido?
  3. Quais serão as exigências de capital regulatório para com a exposição das OPSs às bitcoins?

Tivemos recentemente um grande indicativo de como essas questões tão relevantes serão tratadas, pois o Basel Committee on Banking Supervision (Comitê de Basileia de Supervisão Bancária) lançou uma consulta pública com propostas preliminares para ao cálculo do risco de crédito referente à exposição de instituições financeiras aos criptoativos.

A proposta deste artigo consiste em relacionarmos essa consulta pública para regulação prudencial do setor bancário à regulação prudencial da ANS, especificamente em se tratando de bitcoins. Além de explorarmos um pouco dos impactos previstos (para as OPSs), lembrando que se trata de uma consulta preliminar com uma discussão inicial sobre o tema.

Adicionalmente, a partir das análises realizadas, pretendo responder, em minha opinião, se uma pessoa física ou OPS deveria ter bitcoins.

 

1.Capital de risco de crédito para bitcoins

  1. Cálculo

A consulta pública citada divide as criptomoedas em 2 grupos, sendo que nosso foco é no grupo 2, em que estão as bitcoins, e atribui para esse tipo de criptomoeda um fator de risco de 1250%

Esse fator deve ser multiplicado pelo máximo entre posições long e short.

 Aqui cabe uma observação, de que quase a totalidade das operações são long, que são aquelas operações tradicionais em que se aposta na alta dos ativos. A perda máxima para esse tipo de operação limitada, pois os valores dos ativos como a bitcoin podem cair até um limite de R$0,00, enquanto pouquíssimos investidores irão se arriscar em operações short, em que se aposta na queda dos ativos. Nesse último caso as perdas “ilimitadas”, já que os ativos “não têm limite” de alta. Para aqueles que querem ter uma ideia sobre operações short, deixo como recomendação assistir ao filme “The Big Short” (A Grande Aposta).

Considerando que a fórmula de cálculo do capital baseado em risco de crédito prevê a multiplicação de 8% ao for de risco, e, assumindo que a instituição financeira tenha somente operações long, e sabendo que 8% vezes 1250% é igual a 100%, a exigência de capital baseado em risco de crédito seria de 100% do saldo total da posição em bitcoins.

 

  1. ANS

Até aqui falamos sobre a proposta preliminar de cálculo de capital baseado em risco de crédito para os bancos, mas sabemos que o modelo adotado pela ANS e pela SUSEP para o cálculo atual é baseado no modelo dos bancos, proposto pelo mesmo Comitê de Basileia. Podemos, assim, assumir que o cálculo apresentado possa ser assumido integralmente sem alterações para as OPSs no futuro.

Lembrando que para o cálculo atual do capital baseado em risco de crédito da ANS, também há a exigência de 8% multiplicado por um fator de cálculo vezes o saldo.

 

2.Implicações de cálculo para OPS

Conforme descrito, para cada R$1,00 alocado em bitcoins, haveria a exigência de capital regulatório de R$1,00.

Aqueles que já entenderam todas as implicações decorrentes da afirmação acima, por favor passar para o próximo capítulo.

A exigência proposta traz limitações para as OPSs. Para entender melhor essas limitações, vamos lembrar aqui que as bitcoins são um ativo: sendo ativos “bens e direitos” da operadora.

O primeiro propósito do ativo é de cobrir o passivo: sendo o passivo as obrigações financeiras. Dentro das obrigações que compõem os passivos estão as famosas provisões técnicas, que são passivos em que a operadora deve ter ativos garantidores, ou seja ativos destinados somente a esse fim, referentes à eventos já ocorridos e já reconhecidos contabilmente, como no caso da PESL (Provisão de Eventos/Sinistros a Liquidar), eventos já ocorridos, mas que a operadora ainda não tem conhecimento ou ainda não reconhece contabilmente, dado como uma estimativa de cálculo na PEONA (Provisão para Eventos/Sinistros Ocorridos e Não Avisados) e até mesmo eventos ainda não ocorridos, mas que são uma obrigação da operadora, portanto passivo, como no caso de estimativas de Remissão, PIC (Provisão para Insuficiência de Prêmios/Contraprestações) e Outra Provisões.

Os ativos restantes, após cobrir todos os passivos, constituem o patrimônio líquido. Vale lembrar aqui que no plano de contas da ANS, o patrimônio líquido está entro da conta de passivo, igualando ativos e passivos, mas para o melhor entendimento, devemos destacar essa conta de patrimônio líquido para nossas análises.

O patrimônio líquido deve ser grande o suficiente para cobrir a exigência de capital regulatório. O racional por trás do montante do capital regulatório são os riscos, sendo o risco um evento futuro (antes da data de ocorrência), geralmente associado a uma probabilidade de ocorrência e um período determinado, que denominamos como período de risco. Esses riscos são de os passivos serem maiores ou os ativos sem menores que a encomenda, como por exemplo, a PEONA ser maior que a estimada, a remissão ser maior que a estimada etc. E no caso do risco de crédito, a chance de não conseguir receber o que é devido de terceiros ou a chance de não conseguir liquidar os ativos junto às instituições financeiras, como por exemplo a operadora não conseguir resgatar os valores após o vencimento de uma aplicação em um CDB. A ideia do capital regulatório então seria de que, a operadora teria que ter ativos “acima do esperado”, para cobrir passivos já contabilizados mais passivos “acima do esperado” dados como risco.

 

Voltamos às perguntas da introdução do artigo:

  1. Bitcoins poderão ser dados como ativos garantidores das provisões técnicas?

Não. Os ativos garantidores são para cobrir provisões técnicas (passivos), enquanto as bitcoins têm que estar na parte dos ativos que excedem os passivos, pois têm exigência de capital regulatório no mesmo valor delas mesmas.

 

  1. Servirão como constituição das obrigações com capital regulatório no patrimônio líquido.

Não, exceto para elas mesmas.

 

  1. Quais serão as exigências de capital regulatório para com a exposição das OPSs às bitcoins?

A exigência seria de R$1,00 para cada R$1,00 alocado em bitcoin, isso ocorre pois o Comitê de Basileia avalia o risco da bitcoin como máximo para o modelo de capital baseado em risco de crédito, ou seja, consideram que, eventualmente a operadora possa perder até 100% do saldo aplicado em bitcoins, seja pelo fato da própria bitcoin poder vir a valer R$0,00 em algum dia ou por outros motivos como ataques hackers, fraude etc.

 

3. Pessoas físicas ou OPS deveriam ter bitcoins?

  1. Pessoas físicas

Vou responder a essa pergunta probabilisticamente. Existe uma coisa chamada perfil de investidor, que é relacionado à tolerância do investidor a perdas, mesmo que momentâneas. Não tenho em mãos os dados necessários, mas faço uma estimativa de que mais da metade das pessoas (ou muito mais que a metade) se enquadram no perfil “conservador”, com baixa ou nenhuma tolerância a perdas ou sentimento de perdas nos investimentos, então com probabilidade alta de que o leitor aqui seja enquadrado nesse perfil a resposta é não.

 

  1. OPS

Atualmente as operadoras ainda não podem investir em bitcoins, mas pensando no futuro, com as limitações propostas pelo cálculo preliminar do capital baseado em risco de crédito, torna-se muito menos atrativo se pensar em alocação nesse tipo de ativo.

Há de se avaliar ainda, no futuro como estará a volatilidade da bitcoin, pois considerando o cenário atual, o patrimônio líquido da operadora teria uma variação percentual muito grande entre os meses de competência. Avalio que a maioria das operadoras não está acostumada com uma variação grande no PL nesse momento. Em caso de ocorrer essa grande volatilidade, não seria exatamente um problema, já que conforme discutido não implicaria em perdas para a cobertura dos passivos e do capital regulatório, porém dependendo do tipo de operadora, o gestor da carteira de investimentos poderia ter que estar sempre justificando os motivos dessa volatilidade, e os motivos de a operadora ter bitcoins, especialmente em momentos de baixa do ativo, sofrendo pressão para liquidar a posição com prejuízo, colocando seu cargo em risco, então acredito que a resposta para (grande maioria das) OPS seria não.

4.Considerações finais

  1. Consulta pública

A consulta pública do Comitê de Basileia de Supervisão Bancária foi lançada no dia 10 de junho de 2021 no website do BIS (Bank for International Settlements), com prazo para envio de comentários até o dia 10 de setembro de 2021.

Segue o link para o arquivo de consulta pública:https://www.bis.org/bcbs/publ/d519.pdf

Para aqueles que estiverem lendo este artigo até o dia 10 de setembro de 2021 e queiram enviar comentários acerca de quaisquer aspectos abordados no documento de consulta pública ou acerca das questões levantadas, destacadas no próprio documento, deixo o link: https://www.bis.org/bcbs/commentupload.htm

Na opção “ the document on which you are commenting”, favor selecionar “prudential treatment of cryptoasexposures”.

 

 

 

 

 

Túlio Machado
Gestão Atuarial

 

 


Data da notícia: 20/07/2021

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